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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Contrato

Diante da folha em branco, a escritora se reinventava compulsivamente para criar uma ultima estória, a cada palavra ela se sentia mais motivada e a cada frase construída experimentava uma sensação diferente.  Já era madrugada, e apesar de estar exausta mantinha o sorriso no rosto, tinha urgência em terminar essa serie e por isso escrevia febrilmente. De vez em quando interrompia a escrita e se flagrava admirando-a distraidamente, ela era uma dessas pessoas que nada tinha de especial, falava com um jeito manhoso mas não era carinhosa, gostava de ter propriedade em assuntos que nem ao menos conhecia, às vezes estreava o seu mau-humor como quem estreia um vestido novo e tinha o habito detestável de mascar chicletes e andar descalça. Enquanto a olhava, reanalisava os motivos que a levaram a escolhê-la, mas por mais que tentasse não podia entendê-los; só sabia que a escolhera e que por mais que ela a irritasse estava feliz com sua escolha.
Deitada no sofá podia sentir o olhar que lhe pesava em cima, era modelo profissional e ás vezes prostituta de luxo tinha cinco anos, e nesse interim recebera inúmeros convites, alguns com intenções perigosas e outros definitivamente estranhos mas nenhum como esse. A escritora que agora a observava era sem duvida a pessoa mais intrigante e adorável que já conhecera; abordara-a em seu ultimo desfile e pedira que se hospedasse quinze dias em sua residência por uma determinada quantia, a principio pensou em recusar mas a curiosidade lhe pegou desprevenida então aceitou; afinal de contas não é todo dia que convidam uma prostituta de luxo para ser objeto de estudo.
Na manhã seguinte chegou de malas e instalou suas manhas, mau-humor, tagarelice e manias detestáveis, tirando da escritora a paz a qual estava tão acostumada; acordavam cedo e trabalhavam a serie, uma escrevia enquanto a outra contava detalhes necessários e desnecessários de sua vida pessoal. Quando se sentia entediada, a modelo desfilava descalça por toda a casa, cantando, xeretando, ouvindo, interferindo e mascando trident global connections deitada no sofá; às vezes num surto reclamava sobre sua vida e chorava amargamente suas escolhas, nesses momentos a escritora se aproximava silenciosamente e a envolvia num forte abraço. Deixavam-se ficar assim, abraçadas com olhos fechados até que os cheiros trocassem de corpos.  
Havia momentos em que apenas conversavam trocando confidencias, contavam sobre família, amigos, antigos relacionamentos, comidas preferidas e decepções amorosas; em geral eram parecidas e ao mesmo tempo antagônicas, uma mistura que contrariando as expectativas pessoais dera certo. Às vezes a modelo lia os contos criados sobre si e ficava surpresa com a doçura usada para relatar sua conturbada vida, outras vezes era a escritora quem se surpreendia com a quantidade de problemas que essa carregava sozinha. Foram trocando experiências e manias, e permitindo que o tempo às carregassem despercebidas, foram se curtindo, se permitindo e se desesperando com a ideia da despedida.
No decimo quarto dia de sua estadia a modelo redefiniu o conceito de insuportável, não quis comer ou beber, mascar ou xeretar, e limitava-se em responder com monossílabos a qualquer tentativa de dialogo; passara o dia todo de pijama no sofá olhando a escritora trabalhar incansavelmente. Ao cair da noite foi convencida a comer um pedaço de pizza e a beber um pouco de agua, e ao terminar reassumiu seu posto no sofá recusando-se a dormir na cama. Em sua mesa a escritora tentava entende-la sem sucesso, decepcionada, investiu compulsivamente em seu ultimo texto parando apenas para admirar distraidamente sua beleza. No fundo desejava que ela acordasse com melhor humor, queria servir-se de seu abraço mesmo que fosse o ultimo; mesmo não sabendo lidar com despedidas.
No dia seguinte as duas se trataram como completas estranhas, uma angustia muda passeava entre elas feito visita indesejada; evitaram o abraço de adeus assim como qualquer coisa que o tornasse concreto, então encarceraram os sentimentos e encerraram sua estória com um aperto de mão. Mascando chiclete a modelo entra em seu carro sem olhar pra traz, não queria expor seus sentimentos para que esses não fossem escritos; ligou o carro devagar e finalmente olhou para ela usando o espelho retrovisor interno mas só viu a porta aberta e vazia, deu a partida e chorou como quem perde alguém importante. Nunca fora tão difícil deixar um cliente.           Dentro da casa o tic-tac do relógio a incomodava em demasia, lembrava o irritante barulho que ela fazia enquanto mascava chicletes, olhou para o sofá vazio e foi invadida por uma enorme tristeza; sentou-se na cadeira mais próxima olhando de um lado a outro estranhando a solidão. O silencio na casa era esmagador. Aos poucos o ar foi lhe faltando até tornar-se quase impossível respirar, seus ombros caíram devagar e as lagrimas vieram involuntariamente rolando por seu rosto e molhando seus pés descalços.
Apoiada nos joelhos ela se desesperava com a verdade que lhe invadia, - Eu a amo, disse se assustando com a própria voz; sentia falta dela de um jeito quase impossível de explicar, queria tanto ter lhe dado o abraço de adeus e pedir que ela ficasse, mas não a abraçara e não pedira e agora tudo que sobrara era seu cheiro sumindo no ar e detalhes escritos a mão. Sua mente estava tão bagunçada quanto uma pagina de rascunhos, as lembranças e os sentimentos se fundiam formando um turbilhão dentro dela, e o desconsolo a abraçava forte tentando superar o amor; aos poucos se deixou afundar na cadeira e ficou imóvel como um livro abandonado.   – Também te amo!, ouviu a voz que invadia a sala e não pode conter a felicidade quando a viu parada na soleira da porta sorrindo amavelmente, levantou-se e atravessou o cômodo atônita; sentiu-se insegura enquanto caminhava mas enroscou-se em seu abraço disposta a consumi-la agora que sentia o amor de que tanto escrevera; queria estreá-lo, prova-lo e curti-lo. Queria tudo com ela!

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