Diante da folha em branco, a
escritora se reinventava compulsivamente para criar uma ultima estória, a cada
palavra ela se sentia mais motivada e a cada frase construída experimentava uma
sensação diferente. Já era madrugada, e
apesar de estar exausta mantinha o sorriso no rosto, tinha urgência em terminar
essa serie e por isso escrevia febrilmente. De vez em quando interrompia a
escrita e se flagrava admirando-a distraidamente,
ela era uma dessas pessoas que nada tinha de especial, falava com um jeito manhoso
mas não era carinhosa, gostava de ter propriedade em assuntos que nem ao menos
conhecia, às vezes estreava o seu mau-humor como quem estreia um vestido novo e
tinha o habito detestável de mascar chicletes e andar descalça. Enquanto a
olhava, reanalisava os motivos que a levaram a escolhê-la, mas por mais que
tentasse não podia entendê-los; só sabia que a escolhera e que por mais que ela
a irritasse estava feliz com sua escolha.
Deitada no sofá podia sentir o
olhar que lhe pesava em cima, era modelo profissional e ás vezes prostituta de
luxo tinha cinco anos, e nesse interim recebera inúmeros convites, alguns com
intenções perigosas e outros definitivamente estranhos mas nenhum como esse. A
escritora que agora a observava era sem duvida a pessoa mais intrigante e adorável que já conhecera; abordara-a em seu
ultimo desfile e pedira que se hospedasse quinze dias em sua residência por uma
determinada quantia, a principio pensou em recusar mas a curiosidade lhe pegou
desprevenida então aceitou; afinal de contas não é todo dia que convidam uma
prostituta de luxo para ser objeto de estudo.
Na manhã seguinte chegou de malas
e instalou suas manhas, mau-humor, tagarelice e manias detestáveis, tirando da
escritora a paz a qual estava tão acostumada; acordavam cedo e trabalhavam a
serie, uma escrevia enquanto a outra contava detalhes necessários e
desnecessários de sua vida pessoal. Quando se sentia entediada, a modelo desfilava
descalça por toda a casa, cantando, xeretando, ouvindo, interferindo e mascando
trident global connections deitada no sofá; às vezes num surto reclamava sobre
sua vida e chorava amargamente suas escolhas, nesses momentos a escritora se
aproximava silenciosamente e a envolvia num forte abraço. Deixavam-se ficar assim, abraçadas com olhos fechados
até que os cheiros trocassem de
corpos.
Havia momentos em que apenas
conversavam trocando confidencias,
contavam sobre família, amigos, antigos relacionamentos, comidas preferidas e
decepções amorosas; em geral eram parecidas e ao mesmo
tempo antagônicas, uma mistura que contrariando as expectativas pessoais
dera certo. Às vezes a modelo lia os contos criados sobre si e ficava surpresa
com a doçura usada para relatar sua conturbada vida, outras vezes era a
escritora quem se surpreendia com a quantidade de problemas que essa carregava sozinha.
Foram trocando experiências e
manias, e permitindo que o tempo às carregassem despercebidas, foram se
curtindo, se permitindo e se desesperando com a ideia da despedida.
No decimo quarto dia de sua estadia
a modelo redefiniu o conceito de insuportável, não quis comer ou beber, mascar
ou xeretar, e limitava-se em responder com monossílabos a qualquer tentativa de
dialogo; passara o dia todo de pijama no sofá olhando a escritora trabalhar
incansavelmente. Ao cair da noite foi convencida a comer um pedaço de pizza e a
beber um pouco de agua, e ao terminar reassumiu seu posto no sofá recusando-se
a dormir na cama. Em sua mesa a escritora tentava entende-la sem sucesso, decepcionada, investiu compulsivamente em seu ultimo
texto parando apenas para admirar distraidamente sua beleza. No fundo desejava
que ela acordasse com melhor humor, queria servir-se de seu abraço mesmo que fosse
o ultimo; mesmo não sabendo lidar com despedidas.
No dia seguinte as duas se trataram
como completas estranhas, uma angustia muda passeava entre elas feito visita
indesejada; evitaram o abraço de adeus assim como qualquer coisa que o tornasse
concreto, então encarceraram os sentimentos e encerraram sua estória com um
aperto de mão. Mascando chiclete a modelo entra em seu carro sem olhar pra
traz, não queria expor seus sentimentos para que esses não fossem escritos;
ligou o carro devagar e finalmente olhou para ela usando o espelho retrovisor
interno mas só viu a porta aberta e vazia, deu a partida e chorou como quem
perde alguém importante. Nunca fora tão difícil deixar
um cliente. Dentro da casa o tic-tac do relógio a
incomodava em demasia, lembrava o irritante barulho que ela fazia enquanto
mascava chicletes, olhou para o sofá vazio e foi invadida por uma enorme
tristeza; sentou-se na cadeira mais próxima olhando de um lado a outro
estranhando a solidão. O silencio na casa era esmagador. Aos poucos o ar foi
lhe faltando até tornar-se quase impossível respirar, seus ombros caíram
devagar e as lagrimas vieram involuntariamente rolando por seu rosto e molhando
seus pés descalços.
Apoiada nos joelhos ela se desesperava
com a verdade que lhe invadia, - Eu a amo,
disse se assustando com a própria voz; sentia falta dela de um jeito quase impossível
de explicar, queria tanto ter lhe dado o abraço de adeus e pedir que ela
ficasse, mas não a abraçara e não pedira e agora tudo que sobrara era seu
cheiro sumindo no ar e detalhes escritos a mão. Sua mente estava tão bagunçada
quanto uma pagina de rascunhos, as lembranças e os sentimentos se fundiam formando
um turbilhão dentro dela, e o desconsolo a abraçava forte tentando superar o
amor; aos poucos se deixou afundar na cadeira e ficou imóvel como um livro
abandonado. – Também te amo!, ouviu a voz que invadia
a sala e não pode conter a felicidade quando a viu parada na soleira da porta
sorrindo amavelmente, levantou-se e atravessou o cômodo atônita; sentiu-se
insegura enquanto caminhava mas enroscou-se em seu abraço disposta a consumi-la
agora que sentia o amor de que tanto escrevera; queria estreá-lo, prova-lo e
curti-lo. Queria tudo com ela!
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